INTRODUÇÃO
A nossa investigação para a Tese de Doutoramento e a pesquisa de anos mostrou-nos que a relação entre Arte e Geometria é essencial para se poder fazer a interpretação das obras de arte a um nível mais profundo. Com efeito, depois de aplicado o Método Iconográfico e estarem esgotados os procedimentos possíveis para analisar em termos Iconográficos uma obra de arte, verificámos que a mensagem poderia ser mais aprofundada recorrendo aos estudos de geometria. Por isso, desenvolvemos uma metodologia de investigação que denominámos por «Método Geométrico», destinada a determinar o conjunto de entidades geométricas que estiveram, eventualmente, na génese estrutural da obra de arte e permitem uma maior aproximação ao pensamento original do artista.
De forma sumária, poderemos dizer que o objectivo deste Método é determinar o «Esquema Geométrico de Composição» composto por diversas entidades: as dimensões do rectângulo de base e suas divisões harmónicas, bem como determinadas figuras geométricas utilizadas quer como forma de proporcionar os principais elementos da pintura, quer como reforço da mensagem iconográfica.
Apresentamos, em seguida, alguns exemplos que comprovam a necessidade de complementar a Análise Iconográfica com o Método Geométrico, ou seja englobando Arte e Geometria para um maior aprofundamento da mensagem iconográfica.
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RECTÂNGULO √2 COMO MARCO DA PINTURA
A pintura da Anunciação, pertencente à igreja do Convento de Ferreirim, datada de c. 1534 e atribuída aos chamados «Mestres de Ferreirim», constitui um notável exemplo de como a geometria foi utilizada pelos pintores na génese estrutural da sua obra. Assim, na nossa investigação, determinámos o Rectângulo √2 como sendo a construção determinante para o esquema geométrico de composição desta pintura como se pode ver na figura 1. A diferença entre as dimensões da pintura (A. 128 x L. 91 cm) e as do rectângulo √2 correspondente (A. 128,67 x L. 91 cm) são reveladoras do rigor de execução.
Figura 1. O Rectângulo √2 aplicado sobre a pintura
A confirmação da hipótese de ter sido utilizado o Rectângulo √2 como «marco» da pintura é-nos dada, entre outros elementos, pelo facto do ponto de fuga se encontrar exactamente sobre a linha horizontal do quadrado que está na base da construção geométrica do referido rectângulo, como se pode comprovar na Figura 2.
Figura 2. Determinação do ponto de fuga e traçado de um eixo importante
Não deixa de ser importante chamar a atenção para o facto de que ao traçarmos uma linha vertical que contenha o ponto de Fuga (segmento a amarelo na Figura 2) essa linha vai constituir o eixo de simetria dos arcos abertos na parede de fundo que dá acesso à câmara da Virgem Maria e, ao mesmo tempo, define um quadrado no canto superior direito que terá também a sua importância na estrutura geométrica.
Deste modo não só se confirma que existiu um rigoroso estudo geométrico por parte dos «Mestres de Ferreirim» no que se refere à génese estrutura da pintura, como também se confirma a utilização das respectivas divisões internas do rectângulo de base na definição de outros elementos pictóricos.
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ESTUDO GEOMÉTRICO DA PINTURA EM QUADRATURA DA IGREJA DA CONCEIÇÃO DA PALMA (SALVADOR / BRASIL).
Neste estudo intitulado A linguagem oculta presente na pintura de quadratura do teto da nave da igreja de Nossa Senhora da Conceição da Palma de Salvador: análises artístico-históricas, iconográfica e Iconológica apresentamos uma importante aplicação do Método Geométrico, como complemento do Método Iconográfico, ao realizarmos a análise geométrica da pintura em perspectiva do tecto da igreja de Nossa Senhora da Conceição da Palma, em Salvador (Brasil).
Também neste trabalho, realizado em parceria, se pode comprovar como a geometria presente, devidamente executada pelo artista, surge como forma de proporcionar os elementos presentes, nomeadamente a representação rigorosa da «falsa arquitectura» ao mesmo tempo que reforça a mensagem iconográfica. O texto pode ser consultado a partir do seguinte link:
URL: https://files.comunidades.net/luiscasimiro/Linguagem_oculta_Igr._da_Palma.pdf
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PONTOS DA ESTRUTURA INTERNA
ANUNCIAÇÃO
(Jorge Afonso)
A pintura da «Anunciação» [Figura I], atribuída à oficina lisboeta de Jorge Afonso e datada de c. 1520-1525 é um bom exemplo para demonstrar os limites da aplicação do Método Iconográfico e as vantagens da complementaridade do Método Geométrico. Assim, a análise iconográfica encontra facilmente uma justificação para a presença da pomba do Espírito Santo na representação do episódio da Anunciação e mesmo para explicar o facto da terceira pessoa da Santíssima Trindade ser simbolizada através de uma pomba. Porém, não poderá justificar o facto da pomba, com a auréola envolvente, se situar exactamente na posição em que se encontra e porque não mais para a direita ou para a esquerda.
Figura I - Anunciação (c. 1520-1525). Jorge Afonso (atribuído) - Museu de Setúbal / Convento de Jesus
Com efeito, apenas a aplicação do Método Geométrico, que analisa a estrutura interna da pintura, poderá fornecer uma tentativa de justificar a opção do pintor ao colocar a pomba do Espírito Santo no preciso lugar em que se encontra. De uma forma simples apresentamos a nossa conclusão sobre a localização da figura da pomba que simboliza a presença do Espírito Santo.
Após diversos estudos concluímos que a estrutura interna da pintura é composta por um quadrado de base (a azul na Figura II) sobrepujado por dois Rectângulos de Ouro (assinalados pelas cores avermelhada e amarela na mesma figura). Estes Rectângulos de Ouro possuem uma estrutura interna básica, formada por quadrado e um novo rectângulo, também este um Rectângulo de Ouro. Estas figuras foram divididas por um segmento amarelo em traço interrompido horizontal. Verificamos que o ponto de cruzamento entre essa linha e a mediatriz dos lados menores da pintura (linha essa que também divide os dois rectângulos superiores) constitui o centro de uma circunferência que delimita o desenho da auréola amarela da pomba do Espírito Santo, que se inscreve perfeitamente no interior de um círculo.
Figura II - Anunciação - Estrutura interna:quadrado e Rectângulos de Ouro
Por sua vez, podemos determinar a divisão em duas partes iguais dos Rectângulos de Ouro definidos na parte superior da pintura mediante as suas diagonais (linhas a branco na Figura III) resultando o segmento horizontal vermelho. Esta linha define o valor e o limite do raio da circunferência que serve de auréola à pomba.
Figura III - Anunciação - Estrutura interna: determinação do raio da circunferência
Deste modo se pode verificar que o ponto escolhido pelo pintor para servir de centro da circunferência envolvente da auréola se encontra precisamente na mediatriz dos lados menores da pintura, sobre um ponto importante da estrutura interna dos Rectângulos de Ouro, e que as dimensões da circunferência são também, determinadas pelas divisões internas das mesmas figuras. Aspectos estes que nos ajudam a justificar as opções do artista quanto ao posicionamento da pomba do Espírito Santo e que, sem a aplicação do Método Geométrico não seria possível compreender.
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PONTO DE OURO E DIVISÕES INTERNAS
NARCISO E ECO
(John William Waterhouse)
No caso da pintura de «Narciso e Eco» (1903) de John William Waterhouse (1849-1917), por simplificação, apenas foram consideradas algumas das secções internas do espaço pictórico.
Para melhor perceber o esquema geométrico que, segundo o nosso ponto de vista, foi utilizado nesta pintura, é necessário ter em conta a divisão dos lados de um rectângulo segundo a sua «Secção Áurea» e a determinação dos respectivos «Pontos de Ouro» o que se mostra sumariamente na Figura 1, desenhada com base em idêntica construção realizada pelo matemático grego Euclides de Alexandria (séc. III a. C.).
A pintura apresenta uma composição baseada num esquema de composição que utiliza a Secção Áurea de cada um dos lados do rectângulo (assinalada pela letra grega Φ). Esta construção define, no seu interior, os designados «Pontos de Ouro», pontos privilegiados do espaço pictórico para onde o nosso olhar é dirigido.
Nesta magnífica pintura, o artista utiliza, intencionalmente, um dos «Pontos de Ouro» para sobre ele localizar a cabeça de Narciso que observa o seu próprio reflexo, tal como salientamos na Figura 2.
As divisões internas criadas pelo esquema geométrico permitem perceber melhor as opções do pintor. Como exemplo apresenta-se, também na Figura 2, a linha oblíqua amarela que serve de orientação para um dos membros inferiores de Narciso e como limite para a colocação da cabeça da ninfa Eco.
Avançando um pouco mais neste estudo geométrico, efectuámos o traçado das restantes «Secções Áureas» do rectângulo base e unimos as que se encontram diametralmente opostas (linhas a vermelho na Figura 3). A partir delas desenhámos, a amarelo, algumas das linhas harmónicas delas resultantes. Verificamos como também outros elementos da figura humana e da paisagem nelas se apoiam e se desenvolvem.
Por fim, na Figura 4, traçámos duas linhas horizontais, a branco, determinados pelos pontos de intersecção de segmentos resultantes do esquema anterior (pontos vermelhos e linhas a azul), constatando como, de facto, alguns dos mais importantes elementos da pintura continuam a apoiar-se e a desenvolver-se com base nestes traçados harmoniosos resultantes da «Secção Áurea» dos lados do rectângulo que serviu de «marco» da pintura.
Figura 1: Determinação do «Ponto de Ouro» a partir da «Secção Áurea» dos lados
Figura 2: Narciso e Eco - «Ponto de Ouro» e segmento oblíquo de apoio
Figura 3: Determinação das «Secções Áureas» e das linhas harmónicas
Figura 4: Divisões harmónicas a partir das «Secções Áureas» e linhas horizontais
ADORAÇÃO DOS REIS MAGOS
A utilização do «Ponto de Ouro» por parte dos artistas pode ser comprovada nos dois exemplos que se seguem (Figuras 5 e 6) os quais permitem verificar como os artistas fizeram uso dos Esquemas Geométricos de Composição que utilizavam com muito rigor.
Figura 5: Adoração dos Reis Magos (1619) - Diego Velázquez - Madrid, Museo del Prado
No caso da Adoração dos Reis Magos, de Velázquez, a localização da cabeça do Menino Jesus corresponde, com todo o rigor, a um dos «Pontos de Ouro» do rectângulo envolvente da pintura o que mostra o cuidado do artista na definição das divisões internas da sua obra.
A PONTE DE COURBEVOIE
Algo semelhante poderíamos dizer sobre a pintura de Georges Seurat, que ilustramos na Figura 6, comprovando a utilização rigorosa de um esquema geométrico de composição baseado nas Secções Áureas dos lados da pintura.
Figura 6: A ponte de Courbevoie (1885) - Georges Seurat (1885) – London, Courtland Institutes Galleries
No caso da pintura de Seurat, facilmente se pode verificar como determinadas linhas de força das divisões internas do espaço pictórico,baseadas na «Secção Áurea» dos lados, serviram para o pintor definir e orientar elementos importantes da sua obra.
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Podemos esclarecer um pouco melhor a utilidade do Método Geométrico, apresentando dois exemplos que ilustramos por meio das imagens seguintes.
RECTÂNGULO DE OURO, PONTO DE FUGA E PERSPECTIVA
ANUNCIAÇÃO
Na pintura da Anunciação, atribuída à oficina de Francisco Henriques e pertencente ao retábulo da Sé de Viseu, damos especial destaque ao rectângulo que envolve a pintura e suas divisões internas. As dimensões da pintura correspondem, com precisão milimétrica a um «Rectângulo de Ouro» que tem como figura de base o quadrado desenhado na parte inferior da pintura.
Verificámos que determinados elementos iconográficos e geométricos se encontram situados sobre divisões internas do rectângulo base, entre as quais salientamos o «Ponto de Fuga» assinalado por (F1) na figura 7.
Por outro lado, ao serem marcadas as linhas que permitem determinar os «Pontos de Distância», (figura 8) verificamos, novamente, uma extrema precisão pois a distância entre o ponto D1 e o Ponto de Fuga F1 é exactamente a mesma que a distância entre o ponto D2 e o referido Ponto de Fuga. Tal precisão demonstra o rigor da construção geométrica que foi efectuada como base da pintura, o que comprova a necessidade de realizar estudos geométricos das obras de arte, para melhor compreender o pensamento original do artista.
Figura 7: Anunciação (c. 1502-1505) - Oficina de Francisco Henriques - Viseu, Museu de Grão Vasco
Figura 8: Anunciação (c. 1502-1505) - Determinação dos «Pontos de Distância»
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FIGURAS GEOMÉTRICAS
BAPTISMO DE JESUS
No segundo exemplo, em que utilizamos a imagem que representa o «Baptismo de Jesus» de Piero della Francesca (Figura 9), salientamos a importância das figuras geométricas numa pintura, em particular, o círculo e o triângulo. Verificamos como os braços e o tronco de Jesus Cristo se podem enquadrar no designado «Triângulo de Ouro», reforçando, assim, o significado da mensagem iconográfica.
Este assunto está desenvolvido num artigo que publicámos com o título “Esquemas de composição e figuras geométricas: modos de reforçar a mensagem iconográfica”, no número 2/3 da revista “Convocarte” da Faculdade de Belas Artes de Lisboa, dedicado ao tema da «Arte e Geometria», e que pode ser acedido a partir do seguinte endereço:
https://files.comunidades.net/luiscasimiro/Esquemas_composicao_e_Mensagem_Iconografia.pdf
Figura 9: Baptismo de Jesus (1448-50) - Piero della Francesca - London, National Gallery